sábado, 28 de junho de 2008

aniversário

Os momentos mágicos passam em câmera lenta. Aquele breve relance de um milésimo de segundo, dura a eternidade que tem que durar quando a mente está absorta em suas mais singelas minudências de beleza. Hoje comemorei da forma que devia ser comemorada, os meus vinte e cinco anos recém-completos com algumas das pessoas mágicas habitam a minha vida. Eles têm o estranho hábito de tornar fantásticos estes momentos de música, arte e festa, quando estamos juntos em celebração. A muitas delas, devo minha vida, meu equilíbrio emocional pelo suporte e conforto que, espontaneamente, me ofereceram num momento difícil e a outras devo pela simples boa vontade de estar comigo neste dia de hoje. Faltaram muitas, não menos especiais, mas que se fizeram presente no meu coração.
O problema é que depois o tempo tem que recuperar o tempo perdido e as coisas começam a ficar rápidas, para compensar. Mas ainda assim esses momentos ficam guardados, como mais uma etapa de um processo em que se lapida o mais precioso dos tesouros, a amizade.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

'Estou cego!'

Se a gente não tivesse o livre-arbítrio tudo seria mais fácil. A vida seria um suceder de determinados determinismos e ‘que maravilha viver’. Viveríamos como que num parque de diversões de zumbis a pousar as mãos sobre nossas imensas barrigas e dizer ‘ora veja’, sentindo a brisa matinal programada para aquele exato milésimo de segundo nos balançar as pelancas penduradas. Estou escatológico hoje. Mas tem dias que me pego a filosofar achando que o mundo é uma imensa escatologia. Estou lendo ‘Ensaio Sobre a Cegueira’ e discordo de Saramago. A obra tem seus méritos pois ninguém ganha um prêmio Nobel sem um mínimo de talento para nos fazer pensar, mas o problema é que parece que o Saramago também o escreveu sob o mesmo espírito que hoje escrevo estas palavras. Achando que o problema do mundo é ter gente demais no mundo sem saber de si e dos outros. Reforço que aqui estou pouco me lixando para o que acadêmicos e estetas acham. O que aqui vai são só as impressões que o livro me causou. Se essas impressões estão certas ou erradas, reservo este juízo a algo chamado foro íntimo que cada um tem o seu e que, inclusive, é sinal de extrema polidez respeitá-lo. Voltando, pareceu que ele esqueceu outros detalhes da existência humana que não os sórdidos e que na minha concepção e empáfia poderiam ter dado outros rumos mais agradáveis à narrativa. Ele poderia me dizer ‘se não gostou, não terminasse de ler’, mas terminei e, por isso, legitimo-me a proferir tais palavras (e mesmo que não tivesse terminado, teria dito da mesma forma, opinião não precisa de grandes requisitos para se dar). Acho que o grande estratagema é o livre-arbítrio. Para o bem e para o mal.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

locked in

Quando tenho crises de depressão a criatividade me falta. É como se toda tristeza e angústia potencializada fosse capaz de demolir as delicadas estruturas da alegria e da beleza. Não sei bem se há motivos para ela, que chega sem ser convidada e quando vejo, já estou eu deitado no quarto escuro sem força para sequer levantar. (Não, senhores não há nada com os 25 anos recém-completos. Eles, muito pelo contrário, me dão alegria. Não, senhores, não quero ser depressivozinho poser chorando pelo mundo que não me ama.) Isso foi só pra dizer que a beleza da vida é capaz de me salvar. Seja ela no clichê de um amanhecer, ou num bom filme que me modifique a alma. Assim aconteceu hoje com “O escafandro e a borboleta”. A memória e a imaginação salvaram Jean Dominique Bauby da loucura quando, vítima de um avc aos 42 anos, ele, um jornalista bem sucedido, ex-editor da revista “Elle”, ficou completamente paralisado, menos dos movimentos das pálpebras do olho esquerdo. Através de piscadas de olho, Jean-Do “ditou” sua autobiografia letra por letra. O livro foi transformado em filme e este filme, hoje, mudou a minha vida. Segue um trecho do livro de Bauby:

"Por trás da cortina de pano roída pelas traças, uma claridade leitosa anuncia a aproximação da manhã. Doem-me os calcanhares, sinto a cabeça apertada num torno, e todo o meu corpo está encerrado numa espécie de escafandro. O meu quarto sai lentamente da penumbra. Observo pormenorizadamente as fotografias dos meus queridos, os desenhos das crianças, os cartazes, um pequeno ciclista de folha enviado por um camarada na véspera do Paris-Roubaix, e o cavalete que sustenta a cama onde estou incrustado há seis meses como um bernardo-eremita sobre o seu rochedo.
Não preciso de reflectir durante longo tempo para saber onde me encontro e recordar-me de que a minha vida sofreu uma reviravolta naquela sexta-feira, dia 8 de Dezembro do ano passado. Até essa altura, nunca tinha ouvido falar do tronco cerebral. Naquele dia descobri abruptamente essa peça fundamental do nosso computador de bordo, passagem obrigatória entre o cérebro e os terminais nervosos, quando um acidente cardio-vascular me deixou o dito tronco fora do circuito. Antigamente chamava-se-lhe “ligação ao cérebro” e a sua falta provocava muito simplesmente a morte. O progresso das técnicas de reanimação tornou o castigo mais sofisticado. É possível escapar, mas mergulha-se naquilo que a medicina anglo-saxónica baptizou muito justamente com o nome de locked-in-syndrome: paralisado da cabeça aos pés, o paciente fica encerrado dentro de si próprio, com o espírito intacto e os batimentos da pálpebra esquerda como único meio de comunicação.
Evidentemente, o principal interessado é o último a ser posto ao corrente dessas prerrogativas. Pela minha parte, tive direito a vinte dias de coma e algumas semanas de nevoeiro antes de me aperceber verdadeiramente da extensão dos danos. Só emergi verdadeiramente no fim de Janeiro, neste quarto 119 do Hospital Marítimo de Berck, onde agora penetram os alvores da madrugada.
É uma manhã vulgar. As sete horas, o carrilhão da capela recomeça a pontuar a fuga do tempo, de quarto em quarto de hora. Após a trégua da noite, os meus brônquios obstruídos põem-se a roncar ruidosamente. Crispadas sobre o lençol amarelo, as minhas mãos incomodam-me, sem que consiga determinar se estão a arder ou geladas. Para lutar contra o anquilosamente, desencadeio um movimento reflexo de alongamento que faz mover os braços e as pernas alguns milímetros. Tanto basta, por vezes, para aliviar um membro dorido.
O escafandro torna-se menos opressivo e o espírito pode vagabundear. como uma borboleta. Há tanta coisa a fazer. É possível elevar-me no espaço ou no tempo, partir a voar para a Terra do Fogo ou para a corte do rei Midas. É possível ir visitar a mulher amada, deslizar junto dela e acariciar o seu rosto, ainda adormecido. É possível construir castelos no ar, conquistar o Tosão de Ouro, descobrir a Atlântida, realizar os sonhos de criança e os sonhos de adulto.
Basta de dispersão. É sobretudo necessário que eu componha o início deste diário de viagem imóvel, para estar pronto quando o enviado do meu editor vier recolher este ditado feito letra a letra. Na minha cabeça, mastigo dez vezes cada frase, corto uma palavra, acrescento um adjectivo, e decoro o meu texto, parágrafo a parágrafo.
Sete e meia. A enfermeira de serviço interrompe o curso dos meus pensamentos. Segundo um ritual bem ensaiado, corre a cortina, verifica a traqueotomia e o gota-a-gota, e acende a televisão com vista à obtenção de informações. De momento, um desenho animado conta a história do sapo mais rápido do Oeste. E se eu formulasse o voto de ser transformado em sapo?"

Com a mesma dedicatória que Bauby fez a seus filhos neste livro, encerro este post: A vocês, desejo todas as borboletas!

sexta-feira, 20 de junho de 2008

sobre o poema abaixo

Acho que será um dos posts do qual me envergonho, o daí debaixo. Desculpem-me, mas tinha de publicá-lo mesmo sabendo que não atinge em mim na sua lógica superficial. É mais sensorial, o que aí foi. Não quer dizer, por isso, que seja melhor. Pode ser que seja uma merda. Mas aceito a condição. É o tipo de coisa que quero ler quando eu estiver fazendo mais sentido.
As coisas andam meio brabas, sabem? Desde que os Meninos da Providência foram esquartejados...
Como então?

As rochas

Como se não houvesse motivo
que se continuasse sentindo
que as coisas são um cubo
descendo escada abaixo.

Que a vida é desajeitada,
que tem coisas que vêm à garganta
e se alojam no peito
arranhando todas as artérias e átrios.

Como se houvesse motivo,
coisas acontecem desafiando a ciência
e o entendimento das coisas todas,
comprometidas, se mantém inalterado.

Doutos da vida, suposições absolutas,
o sentido é uma inextrincável teia de ressentimentos.
E os mudos, cegos e mendigos
são um flash na ciranda incontrolável do tempo.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Acerca da morte

Eu vou morrer. Um nanossegundo de terror e uma grande libertação são o que sinto depois de proferir estas palavras. Você também vai morrer. Um ano vai se passar, cem, mil anos, milhões de anos, e o que será? Fico vendo ruínas dessas cidades antigas. É como se a realidade de cada tempo fosse um grande palco e chegasse uma hora em que o show acabasse. Os atores se desfazem de seus personagens, o cenário é desarmado, as pessoas vão embora, as luzes se apagam. Como estará o Rio de Janeiro daqui a cem mil anos? O meu quarto. A minha rua. O maracanã. “Infinito é realmente um dos deuses mais lindos”. E apavorantes também. Tenho por convicção pessoal que a morte é só uma passagem de uma vida imortal. A vida da nossa essência, a vida do nosso espírito. Mas a perspectiva de ser imortal, parando para pensar, me assusta tanto quanto a de ser mortal. A diferença entre uma e outra é a do tudo e do nada. Em uma você estará vivo para sempre e em outra você estará morto para sempre, mas, em ambas, isso será para todo o sempre. A diferença é que eu prefiro acreditar que estarei vivo. A fé é uma questão de escolha, digo e repito. Os antropólogos afirmam que a religião existe porque o homem é o único animal que sabe de sua morte. Nós, os religiosos, sabemos que há muitas outras diferenças entre nós e os animais, ainda que haja cavalares proximidades. A grande questão que se coloca, sim, em nossas vidas é o medo da morte. Todos o temos, mas estive pensando o quanto ela (a iniludível) é necessária para o universo (e para nós próprios também, arrisco), para que outras vidas possam vir, melhores ou piores. É a única coisa sobre a qual não podemos transigir, nós, intransigentes que somos. A vida nos cobra implacavelmente a nossa caridade em deixar que outras vidas e tempos venham. Saber que se vai morrer pode dar medo, mas é igualmente libertador. Um destes artistas contemporâneos, em uma mostra, concretizou essa proposta em um imenso telão com imagens de milhares de anônimos dizendo “eu vou morrer”. O visitante podia igualmente participar entrando em uma cabine e gravando a si próprio falando a malfadada frase. De repente é aí que está a lógica de nossa igualdade universal: Estamos todos sujeitos à mesma Lei que diz que todos iremos morrer. Saber morrer, no fim das contas, é uma grande experiência de humildade.

sábado, 7 de junho de 2008

rascunho

Dentro de mim mora uma cidade. Rodovias, arranha-céus, carros, buzinas, janelas acesas à noite, avenidas, pessoas felizes e outras nem tanto. Eu sou cada uma dessas coisas. Eu me multiplico nelas e nelas me escondo. Eu sou um só e as minhas escolhas. Uma possibilidade. Eu sou a cura para mim mesmo. Eu sou o veneno para mim mesmo. Eu corto meu pulso e danço. Eu tomo banho e choro. Eu vejo uma menina bonita e sorrio (ela tem cheiro de flor).
Eu tenho medo do futuro, mas vivo ele mesmo assim. A cada segundo ele vem novo como um feto. Eu canto músicas que não terminam, eu lembro dos filmes que eu nunca vi (passando sem parar em algum lugar). Eu fico mudo, eu vejo cores. Eu sambo, pulo carnaval, canto alto e me acho muito desengonçado e diminuo um pouco o ritmo, sinto vergonha, me constranjo à toa e fujo pra barra da saia da minha mãe. Eu não gosto de me expor, mas a minha vida é como se fosse um filme. Um filme em preto e branco, quase um noir, com pessoas falando frases de efeito e assoprando fumaças de cigarro, um filme com chuva e um beijo apaixonado no final, com a mocinha chorando e me achando o homem da vida dela. Um filme com femmes fatales longilíneas cujo dorso nu alimentou muitos sonhos adolescentes nos anos 50 e todas elas querem ficar comigo a noite inteira para depois acenderem seus cigarros.
Eu sou o burocrata que escondeu atrás de papéis toda a sua humanidade. Eu sou a barata de kafka, eu sou a Luz do Mundo. Eu sou estudioso e também tenho muita preguiça. Eu ando de terno e gravata e mudo de personalidade quando uso óculos escuros. Eu amo as pessoas e me prostituo para que elas me amem também. Eu sou hipócrita, mas todos dormem. Agora vejo em parte, mas então veremos face a face.
Eu sou.
Eu fui.
Eu vou.